quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"Um Novo Tempo" - A vinheta de fim de ano da Globo


Um dos sinais de que fim de ano está chegando é quando você começa a ouvir:  “Hoje é o novo dia de um novo tempo que começou (...)”. Sorria! É o momento das pessoas fingirem que tudo vai mudar de um dia pro outro , fazerem seus planos que não serão cumpridos e entrarem numa onda mágica de união, amor , abraços , paz e panetones. Nada mais simbólico que o artifício dos fogos , embelezando o céu com sua pirotecnia colorida , explodindo esperanças fugazes. Algumas horas depois lá estão os garis varrendo as velas e flores que Yemanjá não recolheu. Mas “um novo tempo” que se repete a cada ano não poderia  ser algo tão novo assim. E não é...
A história começou em 1971 , em plena ditadura militar brasileira. Enquanto o presidente Médici fuzilava a galera em seus “anos de chumbo” ; Boni , então diretor da Tv Globo , teve a ideia de fazer uma vinheta de natal otimista e esperançosa. A música foi composta por Marcos Valle e a letra é de Nelson Motta e Paulo Sérgio Valle. Os 3 compuseram a partir da sugestão de Boni , de fazer algo sofisticado, mas ao mesmo tempo popular , para que fosse cantado de maneira intuitiva pelo elenco da Globo. A princípio iria ser  veiculada só naquele ano. Ninguém imaginava que a canção tomaria essa proporção toda a ponto de  se tornar um símbolo de fim de ano , chegando a migrar da programação da TV para diversas festas e inclusive para o famoso Réveillon da praia de Copacabana, no Rio. Todos conhecem e todos cantam. Mas por que será que pegou tanto?
A repetição exaustiva  é uma ótima estratégia para grudar algo na cabeça. Mas além disso , há elementos que favorecem uma maior aceitação e envolvimento coletivos . Proponho alguns deles:

1)      Letra confortante , que fala o que todos querem ouvir
Olha que beleza , o cast da Globo está cantando com toda aquela felicidade, e as alegrias não são só deles, “serão de todos, é só querer”. Basta eu querer para ser tão feliz como o pessoal da televisão parece ser , não preciso me esforçar pra isso. Em outra parte temos: “Todos nossos sonhos serão verdade”- Não é 1 ou 2  não, são todos !  Que maravilha! Meus desejos se tornam reais num passe de mágica . O gênio da lâmpada oferecia 3 , a Globo oferece todos!  No  refrão temos um clima mágico de união : “a festa é sua, a festa nossa” . A festa é de quem embarcar nessa onda muito louca. E vamos  nós ,  massagear nossos cérebros nesse dia !

2)      Características da harmonia
    A canção não começa a ser cantada no I grau da escala harmônica , onde seria o ponto de partida convencional. Dessa forma um  estranhamento  sutil  é sugerido, dando uma sensação de “novidade” , ou de ano novo. Além disso em algumas passagens há a chamada cadência plagal , uma variação entre os graus I e IV da escala harmônica que confere uma sensação de placidez. No trecho: “Todos nossos sonhos serão verdade”,  ocorre uma mudança de tom justamente na palavra “sonhos” , abrindo-se  uma nova realidade , justo num momento do ano em que os sonhos de todo mundo estão à flor da pele. Já o  refrão da música parece deslizar  de tanta naturalidade , além de ser bastante curto , o que facilita a memorização e  torna a continuidade possivelmente infinita , a critério do arranjo que se faça pra a música.

3)  A força da tradição
O fato de todos cantarem juntos e saberem a letra de cor, dá uma sensação de integração muito forte , como acontece em hinos de torcida organizada ou cultos religiosos. Quando várias pessoas repetem a  mesma coisa , as diferenças se esvaem e parece que todos somos um só. Esse feeling de pertencimento , ou “instinto de rebanho”, ou “sentimento oceânico”,  torna as coisas mais leves, parece que está tudo nos seus devidos lugares , pois não há fluxo contrário ou um ruído que prejudique a coesão. Como essa época é muito associada à religião e à família por conta do simbolismo do Natal , a ideia de ter uma  grande família , a “família humanidade “ , é algo que conforta os guardiões da tradição.

Ano Passado a vinheta foi ao ar na voz de Roberto Carlos, que acompanhou o cast da Globo, cantando num estúdio fechado. A edição mesclava também uma encenação com  personalidades da emissora  vestidas de povo , como o Bonner de carteiro, o Serginho Groisman vendendo picolé , ou Faustão de Garçom. O mais engraçado é que assim que Roberto Carlos começa a cantar numa TV , na sala de uma casa de família, as crianças saem correndo para fora de casa super contentes. O clima era mais intimista , por causa das situações de família e pelo próprio espaço reduzido das cenas em estúdio.
Este ano, o próprio pessoal dos bastidores da emissora cumpre a função de aproximação com o público , ao aparecem na vinheta também. Todas as 5 versões da vinheta começam com um sujeito que remete a classes mais baixas: costureiras , jardineiros, trabalhadores com crachás etc. É um deles que puxa a música , só depois o elenco aparece. 
Qualquer coisa que  faz parte do início tem um valor intrínseco , é a primeira informação, a referência para o que vem adiante. Dar esse peso a pessoas não conhecidas é uma novidade considerável , mas é preciso lembrar que independente de um possível humanismo e integração , não podemos esquecer a questão do aumento do poder  aquisitivo da classe C no Brasil, um mercado promissor e numeroso. Diversas mídias têm se voltado para esse novo público , que corresponde a uma grande parcela de audiência, sobretudo da Tv Globo.
Quanto ao arranjo da música, neste ano há algumas inovações. Ela começa à capela , cantada por uma dessas pessoas dos bastidores , depois entra uma batida de axé da primeira parte  até o refrão. No trecho”sonhos serão verdades” , uma harpa faz uma varredura em várias notas , naquele efeito típico que dá uma ideia de fantasia. No último verso antes do refrão (“O futuro já começou”) a música dá uma  parada e muda de  estilo: vira um remix eletrônico , justamente para brincar com a  noção do futuro chegando. O baixo faz notas curtas num ritmo swingado, acompanhado de efeitos sonoros e bateria eletrônica. Repete a primeira parte  novamente  e quando chega em o” futuro já começou”, há um rufar de tambores e pratos , para dar um ar de expectativa . O andamento é reduzido , fazendo a música se expandir num clímax lento , com direito a alguns sinos pra temperar o clima natalino.
Este ano a exclusividade das vinhetas não se restringiu à Globo, outras emissoras também exploraram a ideia. A Record distribuiu câmeras para os apresentadores filmarem os bastidores , aproveitando o gosto popular pelos reality shows. O cast da emissora abre presentes e conversa com o público ao som do tema “Do jeito que o povo gosta”. Diferentemente  da superprodução  luxuosa da Globo , o ar é caseiro, buscando transmitir uma  proximidade estilo youtube. Acabou não ficando muito animada, há um clima mais tradicional, o que tem  até a  ver com a  imagem da emissora. Já o SBT fez uma versão do hit “Gangnam Style”. O resultado ficou interessante , com direito a um boneco de animação do Silvio Santos fazendo piruetas e um efeito de multiplicação da Super Nany. O trabalho tem a cara da emissora, não só pelo fato de fazer versão de uma coisa já existente (vide  a enxurrada de novelas e seriados importados e as versões desses seriados em português) , como também de trazer a descontração e alegria , que Silvio Santos sustenta ao longo de tantos anos na TV , conseguindo fazer de seu programa de domingo um sucesso até hoje. O mérito dessa vinheta é passar uma naturalidade e uma aparente sinceridade , que já não é tão evidente na da Globo.
Mas não podemos negar que em termos de música, a Globo conseguiu criar uma referência, que fica no inconsciente de todos nessa época, independente de versões. A canção já traz consigo uma carga afetiva de anos e anos reafirmada  e tendemos a acolher melhor aquilo que conhecemos. Outro ponto importante é que as músicas da Record e do SBT citam o nome das respectivas emissoras. A da Globo não , o que torna a música mais genérica , pronta para ser cantada por qualquer um em diversas ocasiões. Gostemos dela ou não , temos que admitir que já faz parte da história dos brasileiros e de  nossos velhos anos novos.

PARA OUVIR UM POUCO :






Um comentário:

  1. Nossa! Não sabia de todo esse histórico da música. Que bizarro! Muito inteligente essa sua análise... impressionante como tem coisas que viram tão "habituais" que passam despercebidas ao nosso olhar...

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